quarta-feira, 30 de maio de 2012

ARTAUD, UMA POÉTICA DOS EXTREMOS

“Não é possível continuar a prostituir a ideia de teatro, que só é válido se tiver uma ligação mágica, atroz, com a realidade e com o perigo.” Artaud As vanguardas europeias do início do século XX rompem com dois paradigmas da arte moderna: o Belo kantiano, ou a ideia determinada e globalizante de que há um padrão para o Belo; e, a ideia de um absoluto hegeliano. O Surrealismo e mais radicalmente o Dadaísmo foram movimentos que em sua essência propuseram o rompimento com esses paradigmas e se lançaram radicalmente à busca de uma nova arte, de uma arte revolucionária e utópica. Na década de vinte, com o término da Primeira Guerra Mundial, acreditava-se que uma era de paz se abriria para a humanidade. A vitória da Revolução soviética, em 1917, representou uma renovação de forças sociais e políticas no mundo, consequentemente uma renovação de esperanças. O caminho para as revoluções artísticas estava aberto. O século XX só pode ser compreendido a luz dessa utopia: o projeto de uma nova sociedade onde os homens, nas suas relações com os outros homens, encontrariam sua verdadeira dimensão humana. No território da estética, incluindo o teatro, é no movimento surrealista que encontramos a mais radical aproximação deste projeto. Este movimento teve como força motriz uma estética revolucionária, com o objetivo de fundar a utopia do novo homem, baseada na tríade do sonho: Poesia, Amor e Liberdade. Na antiguidade, o teatro grego estava relacionado com o mistério de tornar visível o invisível. Daí sua origem etimológica theatron – lugar para ver. O teatro, portanto, pode ser definido como a cena aberta onde o visível e o invisível se materializa e tomam sua concretude no corpo do ator; este vem a tornar-se uma espécie de para-raios desse encontro. Nisso reside o sublime desespero do Ser-ator, ser o lugar onde essa potência do visível e do invisível se materializa e encontra a sua fisicidade, como nos corpos-paixão deleuzianos. Na relação dos topos visível e dos ou topos invisível reside o mistério do teatro. E ao ator cabe permitir que o público participasse do lado visível desse mistério. A dimensão utópica é a bússola compreender a modernidade. Quatro autores determinaram o que a crítica considerou como sendo o mais importante para a configuração do teatro surrealista: Alfred Jarry, Guillaume Apollinaire, Raymond Roussel e Antonin Artaud. AntoninArtaud chegou a Paris, em 1920 e fez sua estréia no teatro interpretando um personagem mudo, no Theatre de l’Oeuvre. Artaud começou sua aventura no teatro e no cinema como ator. De 1921 a 1934, ele participou de dezoito peças, interpretando peças de Calderon de La Barca, Luigi Pirandello, Jean Cocteau, entre outros. Em 1923, publicou seu primeiro livro de poesias, Tric-trac Du Ciel. A partir de 1924 atuou em diversos filmes. Atraído pela vanguarda do movimento surrealista, Artaud ingressa no movimento surrealista tão logo André Breton lança seu manifesto surrealista, em 1924, atraído pela vanguarda e utopia do movimento. Com Artaud, a revolução da arte mágica surrealista foi levada ao extremo, constituindo-se como uma poética dos extremos. Artaud colocou em prática todos os ideais estéticos contidos no primeiro manifesto surrealista, escrito por André Breton, principalmente este: “Não será o medo da loucura que nos forçará a abaixar a bandeira da imaginação”. Artaud assistiu, em 1931, na exposição colonial, a representação do Teatro de Bali, que foi o ponto de mudança em que Artaud radicalizou as suas propostas de uma nova estética teatral, apresentadas no primeiro manifesto do Teatro da Crueldade. Estava lançada a pedra fundamental e filosofal da revolução teatral de Artaud: a crueldade, a peste, a loucura, a possessão, a encarnação de Dionísio na fragmentação cênica, o teatro total no absoluto da cena do teatro alquímico e do teatro mágico. Se o signo da época é a confusão de valores de uma sociedade entre guerras, de uma “pseudo-esperança” socialista que igualaria os homens, de signos artísticos de uma cultura europeia em necessária implosão. Daí, de certa maneira, as percepções de Artaud acerca do teatro de Bali e de suas lisérgicas experiências no México são a base de sua radical proposta de renovação cultural. Diz ele no prefácio de O teatro e seu duplo: “o que falta, certamente, não são sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura europeia e francesa; mas quando foi que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?” O teatro, o verdadeiro, se serve de instrumentos vivos, continua a agitar as sombras nas quais a vida nunca deixou de pulsar. O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, e sem dúvida brutaliza formas, mas por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança o que sobrevive às formas e produz a continuação delas. O teatro que não está em nada, mas se serve de todas as linguagens – gestos, sons, palavras, fogo, gritos – encontra-se exatamente no ponto em que o espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações. E a fixação do teatro numa linguagem – palavras, música, luzes, sons – indica sua perdição em curto prazo, sendo que a escolha de uma determinada linguagem o gosto que se tem pelas facilidades dessa linguagem; e o ressecamento da linguagem acompanha sua limitação. O teatro que não se fixa na linguagem e nas formas destrói as falsas sombras e prepara o caminho para um outro nascimento de sombras cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida. Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante é não acreditar que esse ato deva permanecer sagrado, isto é reservado. O importante é crer que não é qualquer pessoa que pode fazê-lo, e que para isso é preciso uma preparação. É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer. Antonin Artaud, em sua obra critica um teatro realizado de forma mecânica propondo técnica para um teatro alquímico capaz de transformar de modo contundente a própria ideia de civilização que, tornaria a um certo estado de confluência, civilização e cultura, cultura e teatro, não mais existiriam de forma isolada, como se constituiu na nossa civilização ocidental, de inspiração greco-romana. Artaud foi sem dúvida o grande semeador de sonhos e de questões que acompanham pensadores do teatro contemporâneo, ao longo de todo o século XX, como Grotowski e Peter Brook. Ao contrapor a cultura à fome, Artaud coloca em questão a necessidade da cultura se as pessoas passam fome no mundo, e, mesmo confirmando as palavras de Heiddeger, de que “Arte não é utensílio, que Arte não serve para nada”, Artaud vai à busca de uma Arte verdadeira e não de sua utilidade. O importante, para o mestre Artaud é justamente extrair da cultura o que dela mais se assemelha à fome, uma arte mágica, essencial, na beira no abismo nietzchiano da origem da tragédia. No entanto, toda a trajetória de Artaud esteve associada a inúmeros problemas de saúde e neurológicos. Aos 24 anos começou a tomar tintura de ópio para aliviar suas dores de cabeça e tornou-se dependente químico. Foi internado diversas vezes. Sofreu vários tratamentos para loucura, e, de certa forma isso o levou a questionar e subverter a própria noção de loucura em seus textos, como, por exemplo, em "Van Gogh: o suicidado pela sociedade". Artaud nos provoca indo de encontro a uma arte velha e desinteressante. O teatro verdadeiro não se fixa na forma, nem perdura no tempo/espaço, criando outras relações tempo/espaço. As falsas sombras seriam aqueles empecilhos que obscurecem a visão, possibilitando assim o desvelar da própria obra, que é a manifestação da própria vida. O ator é parte dessa manifestação/obra, se tornando obra de arte viva. Essa noção do Ator integrante e integrado à obra lhe foi escancarada ao conhecer o Teatro de Bali. As técnicas desse teatro, sua disciplina, com os atores se colocando como parte da obra, onde o mágico reside nesse manifestar de mundo. Em 04 de março de 1948, Artaud foi encontrado morto na sua cama. Oficialmente, vítima de um câncer do ânus. Sobre o teatro contemporâneo cabe ainda que brevemente uma pequena reflexão: há uma crise, estética, ética, econômica. Há uma crise, assim como havia na época de Antonin Artaud e de seus colegas surrealistas, no entanto o que parece importante é refletir à luz da iminência da morte do teatro, da iminência da necessidade de um renascimento para lá dos formalismos que engessaram o fazer teatral em fórmulas e técnicas que não são o fundamento da arte, justamente porque o fundamento não é arte. A verdade do ator em cena não é resultado de uma equação matemática na qual se coadunam esses elementos. É algo como saltar no abismo, transcender a toda e qualquer perspectiva racional. Para o ator, cada atuação é esse salto no abismo, pois para Artaud, o teatro deveria fornecer essa transformação radical, tanto para o Ator, quanto para o espectador. Artaud, muito provavelmente foi o primeiro pensador a pensar o teatro do ponto de vista mais abrangente possível: O que é arte? O que é cultura? Filosoficamente se lançou num debate entre essência e forma, entre conteúdo e existência ignorado por seus antecessores. Lançando mão de uma proposta utópica em seu caráter mágico ao vislumbrar um teatro alquímico, um teatro tão violento, tão poderoso que seria capaz de transformar ator e público.
BIBLOGRAFIA ARTAUD, Antonin, Van Gogh, um suicidado pela sociedade, São Paulo, 1995. ______________ , O teatro e seu duplo, São Paulo, Martins Fontes, 1999. ______________ , Los Taharumara, LIMA, Carlos, O teatro surrealista: Revolução e utopia. PAVIS, Patrice, Dicionário de teatro, verbete: Artaud, São Paulo, Perspectiva, 2000.