terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Stanislavski e a construção da personagem


O conceito de criação da personagem reconhece que todos os seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas em peças teatrais. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje e Hamlet na semana seguinte, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismos. Embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e características próprias. Mas não se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que veste um figurino. A criação da personagem é um processo.

O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de se surpreender e até, às vezes, ser contraditória. Nenhum personagem é completo, mesmo os heróis gregos tinham suas falhas trágicas. Modernamente, a dramaturgia nos oferece pais exemplares que se apaixonam perdidamente por travestis.
O primeiro contato do ator com a personagem se dá por intermédio do seu problema humano. Esta relação entre a situação objetiva da personagem e a íntima necessidade pessoal de transformá-la, cria uma síntese dos lados objetivo e subjetivo da personagem. A ação torna visível a vida interna e cria uma base para a experiência vivenciada. Esta síntese leva a uma visão artística do papel onde a expressão externa não está separada do conteúdo da experiência humana. Os objetivos a serem atingidos orientam a personagem ao longo da peça. A cada instante a personagem reavalia sua situação perante seu objetivo e disso surge a necessidade de agir.

É comum identificar o lado psicológico (a vida interna) da personagem com as suas emoções. Na verdade, Stanislavski, elaborador do sistema para o ator, se preocupou durante toda sua vida artística com o problema da criação da experiência verdadeira. Ele entendeu que as emoções não estão sujeitas a nossa vontade, e sim ao resultado de um processo de vida. Elas não podem ser atingidas diretamente. A ação é o indicador mais preciso da personagem. É inútil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual ação que vai fazer.

Por ação entendemos um ato que envolve o ser humano inteiro na tentativa de atingir um objetivo específico. Na ação orgânica o desejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo estão unidos. De fato, o homem inteiro participa da ação, por isso sua importância na criação da personagem. Agimos a partir de nossas percepções. Elas e nossas ações expressam quem somos nós.
Percebemos, avaliamos e depois agimos. O interior, que é invisível, se torna externo, visível e artístico através da ação. Entendido que as emoções surgem durante o processo de ação. “A lógica dos pensamentos gera a lógica das ações, que gera a lógica das emoções”.

A personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Como indivíduos, somos capazes de empreender uma grande variedade de ações. A personagem ameaça e o ator também pode ameaçar. A personagem consola, mas o personagem também o faz. Mas o diferencia o ator da personagem não são as ações simples, individualmente (ameaçar, consolar, desejar), mas a “ação complexa” – o conjunto dessas ações simples que está dirigida a um objetivo, único, provido de coerência e lógica próprias.
Trabalhando e experimentando esta coerência ou lógica de ações que não pertencem ao ator e sim à personagem, o ator começa a entrar no fluxo de vida da personagem.

Ao longo de uma peça, a personagem é capaz de realizar um número significante de ações que constituem uma linha contínua que atravessa todo o texto. A linha contínua de ações é a linha consecutiva de ações de uma personagem que o ator desenvolve a fim de reforçar a lógica e seqüência de seu comportamento no papel. Serve-lhe da mesma forma que uma partitura serve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem e perspectiva.
Um conceito básico de criação da personagem: ela existe a partir de sua lógica de ações. Criar a linha contínua de ações de uma personagem com sua lógica de ações envolve o ator com sua mente, alma e corpo juntos, numa pesquisa psicofísica.

A personagem se diferencia do ator no que diz respeito à lógica de ações e no que diz respeito à maneira de agir. Além da linha contínua das ações com sua coerência própria, o ator também se preocupa com as características da personagem.
A composição de hábitos de comportamento é chamada de caracterização. Muitos atores encaram seu trabalho como o descobrimento do gestual particular da personagem.
O problema da caracterização tem duas vertentes. O ser humano existe como indivíduo e como integrante de um grupo social. Dar individualidade e agregar características que situem a personagem a seus respectivos grupos sociais.
As classes sociais, as profissões, as faixas etárias, demonstram comportamento compartilhado que é imediatamente reconhecível. O comportamento humano também muda de país para país e de época para época.

Os atores de A gaivota, que retrata várias camadas da sociedade russa do final do século XIX precisam ser sensíveis ao fato de que suas personagens se apropriam dos padrões de comportamento de um outro país e de uma outra época. Também, dentro dessa sociedade, as pessoas estão separadas pelas classes e funções sociais – uma ampla pesquisa é necessária para qualquer peça que fuja de nossa época atual. Mas precisamos ficar atentos a observações superficiais e tentação de criar verdades absolutas. É verdade que militares, em geral, compartilham características próprias que os diferem dos surfistas, por exemplo, mas nem todos os militares são, e pode mesmo haver um militar/surfista. O que quero dizer é que há muitas personagens pertencentes a quadros muito característicos, mas que fogem às características mais marcantes de seus quadros.

Dentro dos grupos, cada ser humano é um indivíduo com suas características próprias. E o que as determina como características individuais, ou, melhor dizendo, como modos de comportamento são peculiaridades interessantes, como um andar diferente, por exemplo, ou um andar desleixado, ou um falar monótono e agudo, uma risada histriônica, etc. Enfim, características que se somem em um indivíduo e que componham sua personalidade. É evidente que essas manifestações externas devem estar associadas as realidades interna e mais profundas da personagem.

Na descoberta de uma lógica de ação única e indispensável, o ator percebe que a personagem demonstra certas tendências de ação. Por exemplo: Treplev explode em quase todas as suas cenas, mas ao invés de reconhecermos nele unicamente um personagem explosivo, devemos estar atentos para os motivos que o levam a explodir. É preciso lembrar que o tempo da peça é o tempo em que a vida da personagem está no limite. Questionando os fatos que o levam a perder a cabeça, temos um primeiro passo para estabelecer uma fisicalidade da personagem. Temos a base de sua composição física, temos o como fazer. Ao adaptar seu corpo a situação em que se encontra a personagem, o ator começa a compor seu papel.

Finalmente, o que vai distinguir a personagem do ator é a forma como a ação da personagem é executada. Hamlet vai inevitavelmente ameaçar de forma diferente da que faria o ator, pois, além do fato de que cada ser humano ser único e a personagem ser um ser humano, para caracterizar o ator precisa recompor seu próprio comportamento. Para fazer isso, sem cair na imitação fácil, é necessário transformar os componentes da ação interna e externa que são suscetíveis ao nosso controle: ação física, estado físico, tempo e ritmo, monólogo interior, pensamentos. Este processo se estende pelo período de ensaios e temporada, e até depois.É comum um ator inexperiente e mesmo experientes rejeitarem novos modos de agir – é mais cômodo apostar na naturalidade, no espontâneo e mesmo nos clichês para compor as personagens porque compor uma personagem meticulosamente, passo a passo, rejeitando diversas tentativas até encontrar um caminho satisfatório é tarefa árdua. A descoberta de uma ação psicofísica única e indispensável da personagem, que o sintetize, significa também em certa medida, a “morte” do ator e sua “reencarnação” dentro da personagem, e isso gera medo e nem sempre é desejado pelos próprios atores.