sábado, 19 de julho de 2008

Gil Vicente



Iniciada no reino de D. João I a política de expansão ultramarina, que viria a culminar, econômica e geograficamente, com a fundação da feitoria de São Jorge da Mina (1482) e a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança (1487) no reinado de D. João II e, no de D. Manoel, com o descobrimento do caminho marítimo para a índia (1498) e do Brasil (1500). Portugal tornara-se, numa Europa a que a Renascença e a Reforma estavam mudando a face, no elo de ligação entre o mundo antigo e o mundo novo. À corte de D. Manoel afluíam por igual fidalgos e burgueses, uns e outros deslumbrados pela miragem do Oriente. O País vivia, então, um dos períodos mais florescentes e prósperos da sua história, prenhe todavia de contradições. Essas contradições, porém, viriam a exacerbar-se, até que o estabelecimento da Inquisição em 1531 (e, definitivamente, a partir de 1536), as desastrosas campanhas do Norte de África e a sujeição a Castela em 1580 precipitaram o País naquela (apagada e vil tristeza) que ensombra as derradeiras estrofes d’Os Lusíadas.
Gil Vicente, nascido à volta de 1465 e falecido em 1536 (qualquer destas datas é meramente aproximativa), participou em cheio dessa época, das suas grandezas e das suas misérias, do que nela se vinculava ainda ao passado e do que ao futuro tendia, assumindo na sua obra, como nenhum outro autor do seu tempo, as respectivas contradições. Creio que tais contradições também são contradições com Camões, apesar de terem sido escritos 30 anos depois.
É sob o signo da dualidade que essa obra se processa e descreve, ao longo de trinta e cinco anos, a sua trajetória, resumi-la em poucas paginas é difícil, tal a riqueza e variedade dos seus temas.
Entre 1502 e 1536, Gil Vicente escreveu, interpretou e pôs em cena, cerca de cinqüenta autos, de que a maior parte foi reunida por seus filhos Luís e Paula Vicente numa Compilação editada em 1562 e reeditada vinte e quatro anos depois, com graves mutilações impostas pela censura inquisitorial. Dividiram aqueles a obra paterna em quatro seções – obras de devoção, comédias, tragicomédias e farsas – mas esta distinção peça na medida em que aglutina obras dissemelhantes e separa obras afins.
“Auto” (ayto na primitiva grafia, do latim actus) era a designação comum que se aplicava a todas as composições dramáticas, independentemente do gênero (religioso ou profano) e do número de atos em que se dividiam. O termo aparece já no século XV (num documento régio datado de 1436 e nas trovas em que o poeta Duarte de Brito evoca, no Cancioneiro Geral, os momos de 1451) e prolonga-se até ao século XVII (cf. o Auto do Fidalgo Aprendiz, de F. M. de Melo) com eventuais revivescências literárias até aos nossos dias (cf. o Auto da Barca do Motor Fora da Borda, de L. Sttau Monteiro, 1966).
Autos religiosos: Auto da Visitação, Auto Pastoril Castelhano (1502) Auto dos Reis Magos (1503, Auto de São Martinho (1502), Auto da Fé (1510), Auto da Sibila Cassandra (1513), Auto dos Quatro Tempos (1514), Barcas do Inferno, Purgatório e Paraíso (1517-1518), Auto da Alma (1518), Auto de Deus Padre, Justiça e Misericórdia (1519 ou 1520), Obra da Geração Humana (1520 ou 1521), Auto Pastoril Português (1523), Auto da Feira (entre 1526 e 1528), Breve Sumário da História de Deus, Diálogo sobre a Ressurreição (1526 ou 1527), Auto da Cananéia e Auto de Mofina Mendes (1534),
Farsas: Auto da Índia (1509), O Velho da Horta (1512) , Quem tem Farelos? (1515), Farsa das Ciganas (1521), Farsa de Inês Pereira ( 1523), Farsa dos Físicos (1524), O Juiz da Beira (1525), Farsa dos Almocreves (1526 ou 1527), O Clérigo da Beira (1529).
Comédias: Exortação da Guerra (1513 ou 1514), Auto da Fama, Cortes de Júpiter, Comédia de Rubena ( 1521), Dom Duardos (1522), Amadis de Gaula (1523), Comédia do Viúvo, Frágua de Amor (1524), Templo de Apolo (1526), Nau de Amores, Auto da Serra da Estrela, Divisa da Cidade de Coimbra, Auto das Fadas (1527), Auto da Festa (1527 ou 1528), Auto da Lusitânia (1532), Romagem de Agravados (1533), Floresta de Enganos (1536).
“Não figuram nesta lista, por se terem perdido, o Jubileu de Amores, representado em Bruxelas no ano de 1531, e os autos da Aderência do Paço e da Vida do Paço, citados como o anterior no Índex Expurgatório de 1551 e, também como ele, proibidos. Também não figura o Pranto de Maria Parda, datável de 1522. monologo que se filia na tradição medieval dos “sermões jocosos” e pode considerar-se uma contrafacção burlesca do “Planctus” mariano. Não foram incluídos na Compilação de 1562 o Auto da Festa descoberto em 1906, e os autos de Deus Padre, justiça e Misericórdia e da Geração Humana, publicados sem nome de autor, mas atribuídos a Gil Vicente, com sérios fundamentos, por J.S. Révah.
Na obra vicentina, o realismo mais estreme vizinha com a mais solta fantasia e com o mais refinado simbolismo; semelhantemente, de auto para auto, e com freqüência dentro do mesmo auto acotovelam-se personagens irreais (mitológicas, alegóricas, lendárias ) e personagens diretamente arrancada à vida real, contemporânea ou revoluta. Sucedem-se assim, uns após outros, deuses, pagãos e santos da cristandade, heróis de cavalaria e figuras bíblicas, anjos e diabos, os elementos e as forças da natureza, as estações do ano e as virtudes teológicas – e toda uma vasta, tumultuosa galeria, prenhe de autenticidade, estuante de vida, em que se misturam frades dissolutos e fidalgos arruinados, médicos charlatães e juízes venais, ingênuos pastores da serra e astuciosos camponeses, moças casadouras e princesas enamoradas, ciganas que lêem a sina e alcoviteiras a cujos préstimos por igual recorrem o clero, a nobreza e a burguesia .
Se importa determinar os laços que prendem Gil Vicente à tradição cênica da Idade Média, não importa menos discernir as perspectivas que rasgou à dramaturgia não só nacional como européia. A sua obra é verdadeiramente um marco fronteiriço a assinalar uma encruzilhada em que desembocam e donde partem vários caminhos.
Antecipam-se em um século, na sua concepção teológica e no barroquismo das suas imagens, aos autos sacramentais de Calderón e Lope de Veja; os divertimentos in tercalares de certas alegorias profanas, vão reaparecer nas comédias ballets de Mollière, de cujos doutores pedantes os físicos da farsa vicentina são diretos antepassados. E paira em certos momentos, uma atmosfera poética que evoca a das comédias românticas de Shakespeare.
Reelaborando os temas e as formas dramáticas que a tradição medieval fixará, transfigurando-os com o seu genial instinto cênico, orientando-os para novos rumos, Gil Vicente fez com que o teatro português passasse diretamente da infância à maioridade. Ele foi, na verdade, a figura mais importante dos primitivos dramaturgos peninsulares – e não teve quem o excedesse na Europa do seu tempo.

Como Shakespeare, também Gil Vicente construiu os seus autos segundo um esquema mais narrativo do que propriamente dramático – o que já permitiu uma aproximação entre o teatro do autor quinhentista e o teatro épico de Brecht.