terça-feira, 4 de agosto de 2009

Gil Vicente


Gil Vicente é geralmente considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Há quem o identifique com o ourives, autor da célebre “custódia de Belém”, mestre da balança, e mestre da retórica do rei Dom Manuel. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, ator e encenador. É frequentemente considerado o pai do teatro português, ou mesmo do teatro ibérico já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan Del Encina.

A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem da Idade Média para o Renascimento, fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade, onde se começa a subverter a ordem instituída. Foi, o principal representante da literatura pré-renascentista portuguesa, anterior a Camões, incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.

Guimarães é um dos locais que reclama ser o berço do dramaturgo, assim como também reivindicam seu nascimento as cidades de Lisboa e a Beira Baixa.
Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento tenha sido em 1466, há quem proponha as datas de 1460, ou ainda entre 1470 e 1475. Se nos basearmos nas informações veiculadas na própria obra do autor, encontraremos contradições. O Velho da Horta, a Floresta de Enganos ou o Auto da Festa, indicam 1452, 1470 e antes de 1467, respectivamente. Desde 1965, quando decorreram festividades oficiais comemorativas do 500º do nascimento do dramaturgo, que se aceita 1465 de forma quase unânime.
Gil Vicente era ourives quando escreveu a sua primeira obra, uma imitação do Auto del Repelón, de Juan Del Encina a quem pede emprestada não só a história, mas também as personagens com o seu respectivo idioma, o saiaguês.
Apesar das muitas controvésias a respeito de sua data de nascimento, de sua origem e se era ourives ou não, sabe-se, ao menos que casou-se com Branca Bezerra, de quem nasceram Gaspar Vicente(que morreu em 1519) e Belchior Vicente(nascido em 1505). Com a morte de Branca, casou novamente com Melícia Rodrigues, de quem teve Paula Vicente (1519-1576), Luís Vicente (que organizou a compilação das suas obras junto com a irmã Paula) e Valéria Borges. Presume-se também que Gil Vicente tenha estudado em Salamanca.

O seu primeiro trabalho conhecido, a peça Auto da Visitação, também conhecido como Monólogo do Vaqueiro, foi representada nos aposentos da rainha D. Maria I, consorte de Dom Manuel, para celebrar o nascimento do príncipe (o futuro Dom João III) - sendo esta representação considerada como o marco de partida da história do teatro português, acontecimento que se deu na noite de 8 de junho de 1502, com a presença do rei, da rainha, de Dona Leonor, viúva de Dom João II e Dona Beatriz, mãe do rei. Um dos raros casos na história em que se uma data para a fundação de um “Teatro”.

Gil Vicente tornou-se, a partir de então, responsável pela organização dos eventos palacianos. Dona Leonor pediu ao dramaturgo a repetição da peça pelas matinas de Natal, mas o autor, considerando que a ocasião pedia outro tratamento, escreveu o Auto Pastoril Castelhano. A encenação incluía um ofertório de prendas simples e rústicas, como queijos, ao futuro rei, ao qual se pressagiavam grandes feitos. Dona Leonor se tornou sua grande protetora.

Se foi realmente ourives, terminou a sua obra-prima nesta arte - a Custódia de Belém - feita para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1506, produzida com o primeiro ouro vindo de Moçambique. Três anos depois, tornou-se vedor do patrimônio de ourivesaria do Convento de Cristo, em Tomar, Nossa Senhora de Belém e no Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa. Em 1511 é nomeado vassalo de el-Rei e, um ano depois, representante da bandeira dos ourives na "Casa dos Vinte e Quatro". Em 1513, o mestre da balança da Casa da Moeda, Gil Vicente, foi eleito vereador de Lisboa. Será ele que dirigirá os festejos em honra de Dona Leonor, a terceira mulher de Dom Manuel, em 1520, um ano antes de passar a servir Dom João III, conseguindo o prestígio do qual se valeria para se permitir a satirizar o Clero e a Nobreza nas suas obras ou mesmo para se dirigir ao monarca criticando suas ações. Como o fez em 1531, por ntermédio de uma carta ao Rei onde defende os cristãos-novos.

Gil Vicente morreu em lugar desconhecido, talvez em 1536, porque é a partir desta data que se deixa de encontrar qualquer referência ao seu nome nos documentos da época, além de ter deixado também de escrever a partir desta data.

É evidente que o teatro português não nasceu com Gil Vicente. Esse mito, criado por vários autores, sobretudo por seu próprio filho, Luís Vicente, por ocasião da primeira edição da "Compilação" da obra completa do pai, poderá justificar-se pela importância inegável do autor no contexto literário da península ibérica, mas não é de todo verdadeiro já que existiam manifestações teatrais antes da noite de 8 de junho de 1502.

Os dois atores mais antigos portugueses são, Bonamis e Acompaniado, que, durante o reinado de Sancho I, realizavam um espetáculo de "arremedilho", tendo sido pagos pelo rei com uma doação de terras. O arcebispo de Braga, Dom Frei Telo, refere-se, num documento de 1281, a representações litúrgicas por ocasião das principais festividades católicas. Em 1451, o casamento da infanta Dona Leonor com o imperador Frederico III, da Alemanha foi acompanhado também de representações teatrais. Também nas cortes de Dom João I, Dom Afonso V e Dom João II, se faziam encenações. Contudo, pouco resta dos textos dramáticos pré-vicentinos. Além das éclogas dialogadas de Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão e Sá de Miranda, André Dias publicou em 1435 um "Pranto de Santa Maria", considerado um esboço razoável de um drama litúrgico.

A obra de Gil Vicente vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que já se fazia. Os temas pastoris, presentes na escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior diversidade temática e sofistificação. De fato, a sua obra tem uma vasta diversidade de formas: o auto pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas, farsas episódicas e autos narrativos.

Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa da priemeira metade do século XVI, demonstrando grande capacidade de observação ao traçar o perfil psicológico das suas personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a máxima que seria ditada por Moliere ("Ridendo castigat mores" - rindo se castigam os costumes), Vicente é também um dos mais importantes autores satíricos da língua portuguesa. Em 44 peças, o autor usa grande quantidade de personagens extraídos do espectro social português. É comum a presença de marinheiros, ciganos, camponeses, fadas e demônios e de referências a dialetos e linguagens populares.

Suas obras-primas são, além da trilogia de sátiras Auto da Barca do Inférno(1516), Auto do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória (1519). Em 1523 escreve a Farsa de Inês Pereira.

São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e originalidade evidenciadas; o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.
Alguns autores consideram que a sua espontaneidade perde em reflexão e requinte. De fato, sua forma de exprimir é simples e direta, sem grandes floreados poéticos. Ma acima de tudo, o autor exprime-se de forma inspirada, nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos do mais puro equilíbrio. É versátil nas suas manifestações: se, por um lado, parece ser uma alma rebelde, temerária, impiedosa no que se esforça em demonstrar os vícios dos outros, tal qual um bobo da Côrte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e terno na sua poesia religiosa e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata.

- O seu lirismo religioso, de raiz medieval está bem presente, por exemplo, no Auto de Mofina Mendes, na cena da Anunciação, ou numa oração dita por Santo Agostinho, no Auto da Alma.
- O seu lirismo patriótico presente em Exortação da Guerra, Auto da fama ou Cortes de Júpiter, não se limita a glorificar, em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: é crítico e eticamente preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova realidade econômica, decorrente do comércio com o Oriente. Tema presente em Auto da Índia.
- O seu lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algum erotismo e alguma brejeirice com influências mais eruditas, como Petrarca, por exemplo.

A obra de Gil Vicente transmite uma visão do mundo que se assemelha e se posiciona como uma perspectiva pessoal do PLatonismo: existem dois mundos - o Mundo Primeiro, da serenidade e do amor divino, que leva à paz interior, ao sossego e a uma "resplandecente glória", como dá conta sua carta a D. João III; e o Mundo Segundo, aquele que retrata nas suas farsas: um mundo "todo ele falso", cheio de "canseiras", de desordem sem remédio, "sem firmeza certa". Estes dois mundos refletem-se em temas diversos da sua obra: por um lado, o mundo dos defeitos humanos e das caricaturas, servidos sem grande preocupação de verossimilhança ou de rigor histórico. Por outro lado, valoriza os elementos míticos e simbólicos do Natal: a figura da Virgem Mãe, do Deus Menino, da noite natalina, demonstrando aí um zelo lírico e uma vontade de harmonia e de pureza artística que não existe nas suas mais conhecidas obras de crítica social.

Há um forte contraste nos elementos cênicos usados por Gil Vicente: a luz contra a sombra, não numa luta feroz, mas em convivência quase amigável. A noite de natal torna-se também aqui a imagem perfeita que resume a concepção cósmica de Gil Vicente: as grandes trevas emolduram a glória divina da maternidade, do nascimento, do perdão, da serenidade e da boa vontade.