sábado, 4 de outubro de 2008

Racine (1636-1699)


O teatro e a dramaturgia deviam possuir a beleza formal de um camafeu cravejado de pedras. A peça devia mostrar o mínimo de ação possível; os acontecimentos deviam ser relatados por mensageiros; as personagens deviam revelar suas emoções conversando com essas chatices do teatro francês e o drama devia ser confinado a uma situação central. Nenhuma regra formal obstruía a escolha do conteúdo, mas estava, mais ou menos entendido, que o amor entre os sexos era a principal maravilha do teatro. Excluíam-se temas contemporâneos e gente de classe baixa era proibida de pisar no palco trágico. Ademais se pretendia que as personagens fossem mais tipos do que indivíduos com personalidades distintas.

Ordem e Sensibilidade: Racine (1636-1699)

Racine foi capaz de transformar as restrições pseudoclássicas numa vantagem. Isso em parte porque seu dom para o refinamento resultou em maravilhosa música verbal concedida apenas aos genuínos poetas, e em parte porque sua compreensão do coração feminino era extremamente natural e profunda. Ele assimila a feminilidade sem abandonar a masculinidade. A bissexualidade emocional, que Havelock Ellis e outros, notaram no temperamento artístico visivelmente existia nele. Não é sem razão que tantas de suas tragédias tiram seus nomes de personagens femininas.
No entanto unicamente essas qualidades não são suficientes para fazer um dramaturgo importante. Racine tinha a felicidade de possuir duas qualidades indispensáveis para a tragédia: um temperamento dramático e uma estranha perturbação do espírito. Seu talento pode ser comparado a um pequeno vulcão.
Nascido em 1639 no seio de uma família abastada, ficou órfão aos quatro anos, foi educado por parentes fanáticos e finalmente enviado para o mosteiro de Port Royal, a sede da seita Jansenista, a qual sustentava que todos os homens, exceto alguns poucos indivíduos escolhidos aos acaso para serem beneficiados com a graça divina, estavam destinados à danação eterna. Embrenhou-se no latim e no grego por quadro anos, estudando Sófocles e particularmente Eurípides. Mas também se perdeu em romances que eram totalmente condenados por seus instrutores. De Port Royal foi para o colégio d’Harcourt a fim de estudar filosofia e então oscilou entre direito e teologia. Finalmente escolhendo a última (teologia), mas mesmo naquela época, não podia resistir à atração de uma carreira literária. Estabeleceu-se em Paris, entregou-se aos prazeres da capital,
Amasie, sua primeira tragédia, foi comprada, mas não encenada pela companhia de Bourgogne. Entretanto a fortuna lhe sorriu quando Molière o amparou e encenou sua segunda peça, a Thebaïde , em 1664. a ela segui-se outra abordagem de temas gregos. Alexandre Le Grand. Demonstrando ingratidão, Racine deu a peça aos rivais de Molière. Sendo os atores do Bourgogne mais hábeis na interpretação de tragédias que os “Comédiens Du Roi” de Molière, a comparação dos dois espetáculos foi desfavorável ao segundo. Molière, que emprestara dinheiro a Racine e continuara a apresentar La Thebaïde com prejuízo, ficou profundamente ferido e nunca mais voltou a dirigir a palavra ao tragediógrafo.
No entanto, Racine ficou satisfeito por encontrar a excelente companhia Bourgogne à sua disposição e logo depois em 1667, entregou-lhe sua primeira tragédia memorável, Andromaque. Andrômaca, a viúva de Heitor, é amada por seu conquistador, Pirro, o filho de Aquiles que matara seu marido em Tróia. A memória do herói ao qual entregou seu amor é demasiado grande para que ela possa suportar a idéia de um segundo amor. mas é obrigada a suportá-la, pois apenas através do casamento com Pirro poderá salvar seu filho Astianax da destruição pelos gregos, que estão ansiosos por aniquilar a semente de Heitor. Assim sendo, concorda em casar com Pirro depois de conseguir dele a promessa de que protegerá Astianax e decide suicidar-se depois da cerimônia do casamento. A tragédia chega ao clímax quando a princesa grega Hermione, sujo amor por Pirro é uma obsessão avassaladora, consegue convencer Orestes, que a ama, a matá-lo, apunhalando-se em seguida.
Racine consegue outorgar realidade emocional aos conflitos internos de uma mulher que é leal ao seu primeiro amor, mas deve acomodar-se às circunstâncias de uma jovem cuja paixão a leva a destruir o homem a quem ama.
Eurípides, sabia como transformar suas tragédias numa crítica à vida, uma vez que possuía o dom de olhar para a humanidade de forma ampla, enquanto Racine raramente se ergue acima da situação imediata de sua peça. Mas a tragédia de Racine também tem sua validez, como drama psicológico. É uma comovente elaboração da paixão humana.
O passo seguinte de Racine foi uma incursão pela comédia, com uma divertida e feroz adaptação das Vespas de Aristófanes, intitulada Lês Plaideurs (Os Demandistas). Escreveu a maior parte da peça numa hospedaria da moda, como um exercício de espírito,não empregando grande força na obra.
Racine, retornou ao seu campo em Britannicus, uma forte pintura de Nero e sua corte.
Racine não podia escrever uma crônica da vida de Nero dentro dos limites das unidades de tempo, lugar e ação. Podia apenas concentrar-se numa situação que anunciava a carreira do tirano. Agripina, a ambiciosa mãe de Nero que o levou ao trono. Encontra razões para encarar o futuro caminho do filho como tortuoso. Ele é inescrupuloso em suas paixões e permite apenas a opinião de Narciso, um conselheiro pleno de perversidade. Apaixonando-se por Junia, que está prometida a Britânico, o legitimo herdeiro do trono, ele a rapta e envenena Britânico enquanto lhe protesta os mais calorosos votos de amizade. Junia, foge para o templo das vestais e dedica-se aos deuses e Narciso é assassinado pelo povo enraivecido no momento em que tenta arrancar a moça do altar. Nero é tomado de ira impotente, e sua mãe, bem como seu tutor nada podem fazer exceto esperar que esse crime seja o último do jovem príncipe. Assim, Nero é deixado num ponto crítico do desenvolvimento de seu caráter. O que para os elisabetanos seria apenas o início de uma tragédia, transforma-se aqui numa peça completa. Não obstante, Racine torna vibrante a crise que domina toda a peça e a carrega de força dramática e psicológica.
Mithridate, escrita em competição com Corneille que já ia entrando em anos, é outro drama eficaz sobre a paixão de um homem por uma mulher, ainda que lhe falte o alcance e a profundidade de Britannicus. Sua superioridade sobre a obra de Corneille era patente e seu êxito foi considerável. Também por volta dessa época Racine conquistou a grande honra de ser eleito para a Academia Francesa, que o escolheu ao invés de Molière quando este se recusou a abandonar a humilde profissão de ator.
Racine começara a fazer inimigos co sua língua afiada e comportamento altivo. Uma dessas cabalas literárias que deixam os franceses em ponto de fervura foi organizada contra ele, e um novo dramaturgo, Pradon, foi exibido e lançado à notoriedade. Racine, entretanto, contra-atacou com sua Iphigénie, uma versão do sacrifício de Ifigênia em Áulis, plena de gratificante sensibilidade. Racine triunfou novamente ainda que sua nova tragédia não fosse de molde a permanecer pelos séculos. Tampouco podia haver qualquer discussão quanto ao mérito de seu novo saque da dramaturgia euripidiana. Phèdre.

No Hipólito de Eurípides, Racine encontrou um tema de amor-paixão que trouxe à tona seus maiores poderes. Desapareceu na tragédia francesa o provocativo conflito simbólico entre os dois instintos humanos representados respectivamente por Artemis e Afrodite. Desapareceu também o profundo simbolismo psicológico de um jovem destruído pelo instinto do amor ou a Afrodite que ele negou em si mesmo. Ao invés disso temos a destruidora paixão de uma mulher por seu enteado, Hipólito. Este foi dotado, inclusive de uma namorada. Há muito “embelezamento “e apelo ao sentimental em Phèdre. Contudo, dentro dos limites do classicismo francês, a peça somente podia afigurar-se como um tremendo Tour de force, pois que é extraordinária por sua exploração das profundezas de uma mente obcecada pela paixão.
O crescimento da paixão de Fedra pelo filho do marido e sua luta contra esse amor, esforço que a vem consumindo, são apresentados de forma muito viva. Ela vem rejeitando alimentos já há três dias. Finalmente Oenone, sua ama, descobre a fonte da doença e devotadamente decide-se a cura-lá. Uma vez que, à boca pequena, se diz que Teseu foi morto durante suas viagens, ela argumenta que a paixão de Fedra não é mais criminosa. Numa cena angustiada Fedra revela, sua paixão a Hipólito. Mas é rejeitada por ele e, esmagada de vergonha, foge apressadamente. De repente Teseu retorna e, temendo que Hipólito acuse sua ama ao pai, a devotada Oenone resolve acusá-lo antes. Hipólito por demais honrado para lançar a vergonha sobre a madrasta justificando-se, deixa-se amaldiçoar pelo pai. A maldição o destrói e Fedra esmagada pela dor, mata-se.
O papel de Fedra é tão magnificente que se tornou a pièce de resistance de todas as atrizes trágicas francesas. A famosa Rachel e Sarah Bernhardt não conquistaram lauréis mais honráveis que seus triunfos nesse papel.
A esta altura, no entanto, a cabala contra Racine á estava em pé de guerra e recorreu ao expediente de conseguir fazer encenar outra Phèdre, escrita por Pradon, dois dias depois da apresentação da primeira. Comprando poltronas para a estréia de Racine, deixaram-nas desocupadas, lançando um gelo sobre a apresentação. Por outro lado, compareceram à peça de Pradon, transformando-a num insigne sucesso. O Affaire Phèdre foi um exemplo tão conspícuo de perversidade e Racine ficou tão profundamente ferido por ele que se retirou do teatro. Desgostoso voltou no fim de 1677 para Port Royal que recebeu vivamente o filho pródigo sob seu manto. Do ponto de vista Teológico, podiam argumentar, sua última peça era puro jansenismo; pois não era a tragédia de uma mulher que possuía todas as qualidades com exceção da graça de Deus, sem a qual não há salvação possível! Dominada por sua flamme funeste e agudamente cônscia de sua culpa e danação, Fedra era uma heroína decididamente aceitável para os Jansenistas. Port Royal reconquistou seu autor por completo, e deu ao antigo amante de uma atriz popular uma piedosa esposa que jamais lia uma linha de suas peças. O próprio Racine começou a considerá-las um crime contra a verdadeira religião.
Racine voltou a residir em París e continuou seus trabalhos literários como historiador do rei. Voltou a produzir para teatro apenas em duas ocasiões, ambas com objetivos religiosos. Esther, a primeira delas, narrava a conhecida estória de Haman e da rainha judia que salvaram seu povo de um pogrom. Escrita em excelentes versos.
Embora Racine tenha recusado a permissão para sua apresentação num teatro público, voltou para a dramaturgia com entusiasmo renovado e, um ano depois, produzia a segunda tragédia de Saint Cyr, Athalie, que muitos consideram sua maior obra. A tragédia.
Athalie, é uma obra emocionante. Em parte alguma é tão grande o poder lírico de Racine e em parte alguma encheu ele o seu palco rigidamente limitado com tanta ação e arrebatamento. A idolatra rainha Atália, que assumiu o poder assassinando a família real (que era sua própria família) é perturbada por um sonho onde é avisada que ainda vive um herdeiro do trono. E isso é verdade. Trata-se do jovem Joas, que fora salvo pelo sumo-sacerdote e educado no templo Atália entra no templo, conversa com Joas sem saber de quem se trata e sente-se singularmente tocada de afeto por ele. Mas chegou o momento de colocar no trono o jovem príncipe, que observará fielmente a verdadeira religião hebraica. Em conseqüência, o sumo-sacerdote Joad arma os Levitas, separa Atália de sua guarda e consegue que a matem. A peça se encerra por um rapsódico hino de triunfo.
Embora negada ao teatro público, Athalie foi encenada com retumbante êxito tanto em Saint Cyr quanto em Versailles no ano de 1691. não obstante, os últimos dias de Racine foram toldados pelo desfavor na corte. Aventurara-se a esboçar um plano para a melhoria da condição em que viviam os pobres, cujo número crescia cada vez mais enquanto Luís XIV sugava o povo com sua extravagância e suas geurras imperialistas. O autocrático governante ficou irado ao encontrar Mme de Maintenon lendo a proposta de Racine. “Racine não deve imaginar que, por ser um grande poeta, deveria ser ministro do Estado”, declarou o rei. Virtualmente expulso da corte, Racine adoeceu com a humilhação. Angustiou-se a ponto de enfermar e morrer aos 21 de abril de 1699. em suas obras completas Racine deixou uma herança que deu expressão a alguns dos mais típicos elementos do temperamento francês. Sua sensibilidade e relacionamento com a paixão e o amor.
A paixão era o domínio próprio do dramaturgo de que se disse que suas personagens femininas eram “belas mulheres cheias de graça da Ática, mas às quais faltava a graça de Deus”. Enquanto Corneille celebrava a força do homem, Racine, dramatizava a fraqueza do homem, e a falha trágica de suas personagens na maioria das peças é representada pela vitória da paixão sobre a razão. E o mesmo dualismo aparece em sua técnica, que é mais ordeira que a de Corneille. A concentração no momento crucial da vida das personagens e não na evolução que conduz à crise cria uma forma dramática compacta, racionalmente ordenada. Ademais, a ação é relegada a eventos fora do palco, narrados por mensagens e se torna secundária na análise de obras dessa ordem; “o que acontece tem menos importância que as reações mentais das personagens...a ação está praticamente confinada ao cérebro”. Não obstante, sua compreensão de toda a paixão numa única crise principal proporcionava em geral na máxima intensificação do sentimento.
Há pouca dúvida de que Corneille e especialmente Racine fizeram uma contribuição à dramaturgia e às letras humanas que não vem ao encontro das modernas existências de ação.
Ao introduzir ordem na dramaturgia, Racine, deu um grande passo que em muito iria servir ao ulterior drama realista. Este drama em prosa e da vida quotidiana não podia comportar o derramamento elisabetanos ou das tragédias românticas posteriores. Peças como Os Espectros e Hedda Gabler, não importa o quão longe estejam do gosto Luís XIV em outros aspectos, possuem uma capacidade de estrutura sem a qual perderiam a maior parte de seu poder.