terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A liberdade como um problema político

Na linguagem política, há diversos significados para o termo liberdade. A liberdade como uma qualidade ou propriedade física e moral do indivíduo, ou a liberdade enquanto valor, enquanto bem, ou fim a perseguir, é habitualmente considerada como um bem ou um fim para um indivíduo ou para um ente coletivo (grupo, classe, nação, estado), concebido como um superindivíduo. Liberdade é, em geral, um valor para o homem como indivíduo.
Os dois significados relevantes se referem àquelas duas formas de liberdade que são habitualmente chamadas, com freqüência cada vez maior, de negativa, e positiva. Por liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos. A liberdade como ausência de impedimento ou de constrangimento, entende-se como liberdade negativa, e compreende tanto a ausência de impedimento, - a possibilidade de fazer -, quanto à ausência de constrangimento, - a possibilidade de não fazer. Liberdade, nesse sentido, freqüentemente chamada de liberdade negativa, consiste em fazer ou não fazer tudo o que as leis, entendidas em sentido amplo, permitem ou, ao menos, não proíbem.
Thomas Hobbes revela ter bem clara em sua mente essa idéia de liberdade, que a ilustra nos seguintes termos: "(...) como os movimentos e ações dos cidadãos nunca são em sua totalidade regulados por lei, e nem podem ser por causa de sua variedade, por isso há uma quase infinidade de atos que não são comandados, nem proibidos, e que cada qual pode fazer livremente. É neles que cada qual goza de liberdade e é nesse sentido que aqui se toma liberdade, a saber, como a parte do direito natural que é concedida e deixada aos cidadãos pelas Leis Civis". John Locke não se expressa de forma diferente: "(...) a liberdade dos homens submetidos a um governo consiste (..) na liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não prescritas por essa regra, e não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de um outro homem". A formulação clássica dessa acepção de liberdade foi dada por Montesquieu: "A liberdade é o direito de fazer o que as leis permitem".
Por liberdade positiva, entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões sem ser determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade é também chamada de autonomia. É positiva porque indica a capacidade de se mover para uma finalidade sem ser movido. Autodeterminar-se significa não ser determinado por outros ou não depender dos outros para as próprias decisões. A definição clássica desse tipo de liberdade foi dada por Jean Jacques Rousseau, para quem a liberdade civil consiste no fato de o homem, enquanto parte do todo social, não obedecer a outros, e sim, a si mesmo. Ou ser autônomo no sentido preciso da palavra, no sentido de que fornece leis a si mesmo e obedece apenas às leis que ele mesmo se deu: A obediência às leis que prescrevemos para nós é liberdade.
O que permite distinguir nitidamente as duas formas de liberdade é que a liberdade negativa é uma qualificação da ação; a liberdade positiva é uma qualificação da vontade. Mais do que de liberdade negativa e positiva, mais apropriado, seria, falar de liberdade de agir e liberdade de querer. O fato de que uma ação seja livre querer dizer, segundo a definição de liberdade negativa, como não impedimento, que essa ação pode ser realizada sem encontrar obstáculos, pode-se dizer que tal ação é livre independentemente do fato de que tenha sido desejada e, mais ainda, de que tenha sido desejada por uma vontade livre.
Uma sociedade ou um Estado livre, na esfera política, é uma sociedade ou um Estado nos quais a liberdade negativa dos indivíduos ou dos grupos é acompanhada pela liberdade positiva da comunidade em seu conjunto, nos quais uma ampla margem determinada de liberdade negativa dos indivíduos ou dos grupos (as chamadas liberdades civis), é a condição necessária para o exercício da liberdade positiva do conjunto (a chamada liberdade política).
A liberdade é a ausência de todos os impedimentos à ação que não estejam contidos na natureza. A liberdade política de Rousseau se determina com base nos ditames da razão seja essa a razão divina ou cósmica. Dessa liberdade pode-se dizer que não consiste em não se estar submetido a nenhuma lei, mas, sim, em se estar submetido à lei da razão.
As liberdades civis, protótipo das liberdades negativas, são liberdades individuais, inerentes ao individuo singular. São, historicamente, o produto das lutas pela defesa do individuo, como tendo um valor em si mesmo, ou como sujeito das relações econômicas. A liberdade como autodeterminação, ao contrário, é geralmente atribuída a uma vontade coletiva, seja ela à vontade do povo, da comunidade, da nação ou da pátria. O que significa que o problema historicamente relevante não é tanto o da autodeterminação do indivíduo singular (questão teológica, filosófica ou moral), mas antes o da autodeterminação do corpo social do qual o indivíduo faz parte.
É significativo que, para o tipo de liberdade determinado por Hobbes, Locke e Montesquieu, empregue-se freqüentemente a fórmula liberdade em face do Estado, que chama a atenção para liberdade do individuo em relação ao Estado, enquanto, que para Rousseau, emprega-se a fórmula da liberdade do Estado, onde o sujeito da liberdade é o ente coletivo Estado. As teorias que sustentam essa liberdade têm como paradigma Rousseau, que sustenta uma concepção orgânica da sociedade e têm como objetivo, não a liberdade dos indivíduos, mas a liberdade do todo. Basta pensar nas quatro liberdades proclamadas por Roosevelt, na mensagem ao congresso dos Estados Unidos, em 5 de janeiro de 1941. São elas; liberdade de culto, liberdade de palavra, liberdade em face do terror e liberdade em face da necessidade.
Na história da formação do Estado constitucional moderno, a demanda da liberdade política se processa simultaneamente com a demanda das liberdades civis. Na idéia lockiana do governo civil, é impossível separar o princípio da proteção de alguns bens fundamentais, como a liberdade, a vida e a propriedade, da participação do povo na formação das leis, embora o povo seja constituído por uma restrita classe de proprietários. A liberdade entendida como a participação da maior parte dos cidadãos no poder político é uma participação que se amplia gradualmente até o sufrágio universal masculino e feminino. Longe de ser antiga, é cada vez mais moderna.
Sem liberdades civis, como a liberdade de imprensa e de opinião, como a liberdade de associação e de reunião, a participação popular no poder político é um engano; mas, sem participação popular no poder, as liberdades civis têm bem pouca probabilidade de durar. Enquanto as liberdades civis são uma condição necessária para o exercício da liberdade política, a liberdade política é uma condição necessária para, primeiro, obter e, depois, conservar as liberdades civis. Democratas como Rousseau, na exaltação da vontade geral como expressão da participação coletiva do corpo político, negligenciaram as liberdades negativas, a ponto de afirmar que a vontade geral não tem limites, não sendo limitada pela existência de direitos pré-constituídos.
A evolução do Estado representativo moderno foi caracterizada por uma luta ininterrupta no sentido da ampliação das liberdades civis e da liberdade política. Trata-se de um movimento que vai da liberdade de opinião, inicialmente limitada à liberdade religiosa, até a liberdade de imprensa; da liberdade de reunião até a liberdade de associação, chegando-se à sofisticação dos partidos ; do sufrágio restrito ao sufrágio universal, do fortalecimento do sistema representativo, até a criação dos institutos de democracia direta.
Recorre-se à distinção entre a vontade geral, que seria a verdadeira vontade do corpo social, e a vontade individual, que seria a vontade dos cidadãos individualmente. Considera-se que o indivíduo é livre somente quando obedece à primeira, ou seja, à vontade geral, que ele mesmo contribui para formar. Isso explica a liberdade como sendo obediência às leis, na medida em que elas sejam a mais alta e clara expressão da vontade coletiva. A verdadeira dificuldade consiste em determinar historicamente uma vontade coletiva de natureza tal que as decisões por ela tomadas devam ser acolhidas como a máxima expressão da vontade de cada indivíduo, de modo que cada um, obedecendo a todos, como diz Rousseau, não obedeça a ninguém e seja tão livre quanto antes.
A sociedade ideal para Rousseau é a do Contrato Social, onde cada um é livre não pela extensão da esfera de liberdade negativa de que desfruta, mas na medida em que obedece à lei que ele mesmo se deu, através da formação de uma vontade geral.
Segundo Norberto Bobbio, “Quando, no início do Contrato Social, Rousseau escreveu as fatídicas palavras o homem nasceu livre, e por toda parte encontra-se em cadeias, indicou na libertação das cadeias, no ideal da liberdade, o sentido da história”. A revolução francesa aparece como a primeira e entusiasmante realização desse ideal.
A liberdade na tradição liberal é individualista e encontra sua plena realização na redução a termos mínimos do poder coletivo, personificado historicamente pelo Estado; a liberdade da tradição libertária é comunitária e se realiza plenamente apenas na máxima distribuição do poder social, de modo a que todos participem dele em igual medida. A sociedade ideal para Marx é uma sociedade livre de indivíduos associados. Já a liberdade na tradição liberal é individualista e encontra sua plena realização na redução a termos mínimos do poder coletivo.
Segundo Nieztsche, “Deseja-se a liberdade enquanto ainda não se tem a potência. Quando se tem a potência quer-se o predomínio; se não se consegue o predomínio, então se quer a justiça, ou seja uma potência igual”.
Marx, no capítulo I do Manifesto do partido comunista saudou o advento da burguesia como um dos grandes movimentos libertadores da história: “somente a burguesia demonstrou que a atividade do homem pode realizar”.
De Montesquieu a Marx, a categoria histórica com que se caracteriza tudo o que não é europeu é o despotismo. A Europa é livre porque conseguiu triunfar contra a opressão religiosa, contra a opressão econômica e contra a opressão política: é uma civilização secularizada contra os regimes sacerdotais, de livre iniciativa contra os impérios burocráticos onde a economia é regulada pelo alto, democrática contra o domínio de um ou de poucos. Marx, afirmava, sobretudo que a emancipação apenas política não era a emancipação humana; e que a emancipação humana deveria começar pela sociedade civil.
A idéia de que a libertação da humanidade seria algo inexorável foi o efeito não só do entusiasmo moral suscitado pela Revolução francesa, mas também da subversão do vínculo tradicional entre sociedade civil e Estado. Da descoberta da preeminência da sociedade civil sobre o Estado que se seguiram às primeiras reflexões sobre a incipiente sociedade industrial.
Do Leviatã, de Hobbes, passando pelo liberalismo lockiano, pela organização social de Montesquieu e pelo Contrato Social de Rousseau é constante e firme a convicção de que o Estado é apenas um reflexo da sociedade civil e que, portanto, uma vez libertada a sociedade à potência do Estado este não terá mais razão de existir.

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